Por Gustavo Gurgel
No fim da tarde, o fórum cheirava a papel úmido e ar-condicionado cansado. Eu era estagiário, plateia discreta de audiências rápidas, quando entrou um senhor magro, uns setenta e cinco, boné na mão como quem pede licença para a própria vida. Receptação de uma bicicleta, era a acusação. O rito andou até o interrogatório.
— Sr. Fulano, o senhor confessa que comprou uma bicicleta produto de furto? — perguntou o juiz, olhando por cima dos óculos.
O senhorzinho pigarreou, ajeitou o boné no colo e disse:
— Comprei na feirinha da barganha, doutor… Não é mesmo, fulano?
E virou o rosto para os servidores, procurando ali, no canto da sala, a confirmação que a cidade dá quando assina embaixo da nossa memória. Cada detalhe que o juiz pedia, ele conferia com o público de bastidores:
— Sabe aquela ali perto da padaria, fulano?
A pergunta não avançava; a liturgia, sim. O juiz, já sem tempo, cortou:
— Isto é um tribunal. Eu decido o seu processo. O senhor deve falar comigo.
O homem respirou fundo. Havia no olhar dele um susto antigo, desses que a gente sente quando a língua da casa não cabe na língua do prédio público.
— Olhe, vim aqui na boa intenção… e o senhor vem com malcriação pra cima de mim? Não falo mais. Vou embora.
Levantou-se devagar, como quem se levanta de um banco de praça. E, por um momento, a Justiça saiu com ele pela porta. Enquanto o juiz, sem jeito, encerrou o interrogatório.
Sempre avaliei que o direito precisa de ritos para não virar bagunça, mas quando o rito vira muro, o processo perde o seu sujeito. Aquele homem não falava o idioma do “consta dos autos”; falava o da feira, do mercado, do vizinho que viu. Entre a pergunta perfeita e a resposta possível, havia um abismo.
É por isso que, no meu ofício, eu tento aproximar bordas. O direito, por si, nu, cru, quase nunca confere uma boa decisão capaz de satisfazer o interesse da parte que, ali no processo, litiga. Seja em matéria penal com uma pena altíssima depois de um crime brutal, seja em processos de família; a sentença sempre vai trazer um vazio, ainda que dentro de uma vitória momentânea. O direito — ou a justiça — foi o mecanismo que o homem coletivo encontrou de “pacificar” os problemas sociais através de um ente soberano. Estabeleceu princípios, métodos, ritos, critérios. Confiou a determinadas pessoas, os chamados “operadores do direito”, a premissa de fazer valer a lei. Mas a quem?
Trouxe, com isso, uma cultura carregada de pesos e sobrepesos jurídicos, de institutos complexos, de códigos, leis especiais, atos administrativos, decretos, tipos e formas de petição, com regras rígidas. Trouxe cenários formais que exigem roupas também formais. Que exigem elegância. Só que, quando a forma descola do sentido, esse verniz vira máscara. A toga, o latim, o jargão e a coreografia processual passam a proteger menos os vulneráveis e mais o próprio sistema — um encastelamento que afasta a população do seu direito de compreender, participar e ser ouvida. Não é a liturgia que precisa acabar; é o seu abuso. Precisamos derrubar as muralhas: linguagem clara, escuta ativa, salas que acolhem, protocolos que cabem no cotidiano, decisões que conversam com a realidade. O direito tem de descer a escada do castelo e caminhar a rua; não para perder autoridade, mas para ganhar legitimidade. Porque justiça não é um espetáculo para iniciados: é um serviço público de tradução da vida em regra e da regra em vida.
Não somos senhores da lei; somos operários da cidadania. Nosso trabalho é levantar andaimes de linguagem entre o que o Código pede e o que a vida consegue dizer — para que ninguém precise sair da sala levando consigo, silenciosa, a parte da Justiça que lhe cabia.
Gustavo Gurgel, advogado, com experiência em direito criminal e litígio decisivo de alto impacto. Pai de 3 filhas.
 
