Por Gustavo Gurgel
Advogado criminalista e articulista de temas jurídicos e institucionais.Em Itapetininga, uma clínica de optometria se tornou cenário de horror
Um médico entrou armado, abriu fogo e tirou a vida de duas pessoas. Uma terceira segue hospitalizada, entre a vida e a morte.
As vítimas não o conheciam. Não o provocaram. Estavam apenas trabalhando, cumprindo o ofício modesto e silencioso da rotina.
O médico, que um dia jurou proteger a vida, decidiu eliminá-la.
Antes de empunhar a arma, ele empunhou petições. Buscou o Estado, moveu reclamações, recorreu às instâncias formais.
E, em todas elas, ouviu o mesmo veredito: não há direito em seu pedido.
Era o fim do processo, mas, para ele, não era o fim da causa.
Recusou a negativa da Justiça, desacreditou na lei e resolveu fazer, com as próprias mãos, aquilo que o Direito lhe negara.
É nesse gesto que se revela o verdadeiro crime — não apenas o homicídio, mas a usurpação da justiça.
Quando alguém acredita que pode corrigir o mundo pela força, retorna ao tempo em que valia a própria mão, o próprio juízo, a própria dor como critério de razão. É o instante em que o instinto se fantasia de justiça e o ressentimento se traveste de verdade.
O juramento hipocrático, pronunciado por todos os médicos desde a Grécia Antiga, diz:
“Aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu poder e entendimento, e nunca para causar dano ou mal a quem quer que seja.”
Ao descumpri-lo, o agressor traiu mais do que a medicina.
Traiu a própria humanidade e o limite moral que sustenta toda forma de convivência.
As vítimas, que nada tinham a ver com o ressentimento do atirador, pagaram com a vida pela incapacidade de um homem aceitar o ‘não’ da lei.
O “não” é o instrumento civilizatório do Direito. É ele que nos impede de agir sob o impulso, que transforma a fúria em rito, que nos ensina que nem tudo o que sentimos é justo.
O médico de Itapetininga desobedeceu a esse princípio e quis transformar sua dor em sentença.
Ao fazê-lo, não apenas destruiu vidas inocentes. Destruiu também a linha invisível que separa o humano do bárbaro.
O bisturi, criado para curar, foi simbolicamente substituído por uma arma.
E o que se ouviu depois dos disparos não foi apenas o eco do crime, mas o som de um pacto rompido: o pacto que faz de cada cidadão um sujeito da lei, e não seu dono.
A tragédia de Itapetininga é um luto coletivo. Não apenas pelas vidas ceifadas, mas por aquilo que, nelas, nos lembrava da importância de confiar no Direito, mesmo quando ele nos frustra.
Porque, sem ele, não há Justiça.
Há apenas vingança.
E o silêncio irreversível dos inocentes.





