01 MAR 2021
MARCO VIEIRA DE MORAES
Aos 74 anos, o escritor e adestrador de animais Carlos da Terra conta com exclusividade para o site Cidade Itapetininga como era ser jovem estudante sob a ditadura militar que governou o Brasil por 21 anos (1964-1985). Terra fala sobre como era viver com medo de ser preso e morto pelo regime, a perda de amigos e a luta ideológica entre as várias tendências que havia na época. Neste dia 31 de março, o golpe militar que instalou a ditadura completa 57 anos.
Carlos da Terra tinha 18 anos na época do golpe. “O cenário político em 64, na minha visão, é que havia um processo que envolvia toda a sociedade. Eu participei de vários movimentos e passeatas, festivais de música”, conta o escritor.
Ao falar do medo e da pressão psicológica que sofria, o escritor lembra que “não tinha como tomar cuidado”. “Tinha que torcer para não ser sorteado né? Muitos amigos meus morreram, pessoas que eram arrimo de família, intelectuais; não atacavam ninguém”. Ele afirma que as pessoas eram presas dentro da casa. Teve um, que cuidava da mãe e do irmão mais novo, não tinha pai. Ele era da imprensa de esquerda, vamos dizer assim, responsável pela chamada inteligência da esquerda”, afirma.
Morte no viaduto do Chá
Carlos da Terra lembra a história do amigo Roberto Macarini. “Ele era muito legal, tranquilo e corajoso. Foram lá na casa dele, a mãe estava lavando roupa no tanque. Capturaram o Roberto e o levaram embora. Nunca mais se viu. Aí ficamos sabendo o que aconteceu: na cadeia ele apanhou muito e foi colocado no pau-de-arara. Deram choque. Tudo para ele dizer onde era o aparelho (local onde as pessoas se reuniram). Eles (torturadores) queriam que o Roberto dissesse onde era o aparelho. Ele cansou de apanhar e falou: ‘tá bom. Eu levo vocês’. Aí o mandaram se limpar, tomar um banho e deram uma camisa limpa para ele. Quando estavam passando pelo viaduto do Chá, ele se distanciou uns dois ou três metros dos agentes e pulou. Deu tempo ainda de um dos homens o segurar pela mão. Ele começou a puxar o policial para baixo, que o largou e o Macarini caiu e morreu lá. Isso tudo nos foi passado depois”, lembra Carlos da Terra.
Embora haja uma outra versão, de que Roberto Macarini tenha sido jogado pelos agentes do viaduto, Carlos Terra acredita que a história de que Macarini tenha pulado é verdadeira, devido a riqueza de detalhes, contados por outros presos, que estavam no local onde o jovem foi detido e torturado. Para a Comissão da Verdade, a morte de Roberto Macarini é responsabilidade do Estado Brasileiro.
Mais amigos
“E um dia acordei e vi a manchete do jornal: Massa, o terrorista, diz que se entrega que se a polícia garantir sua segurança”. É assim que Carlos da Terra se lembra de Massafumi Yoshinaga, estudante preso e torturado pelo regime, que o obrigou a dar um depoimento na televisão, no qual se dizia arrependido de seus atos. Essa atitude fez com que Massafumi fosse repudiado pelos ex-companheiros de luta. Ele acabou sofrendo de distúrbios psicológicos e suicidou-se em 7 de junho de 1976.
Manuel Henrique Ferreira foi outro amigo que Carlos viu ser preso pela ditadura. “O Mané era meu colega de escola, íamos e voltávamos juntos. Todo mundo gostava dele”, lembra o escritor. Ferreira participou do sequestro do embaixador alemão em troca de prisioneiros políticos. Ele morreu em 2014. Era casado com Graça Lago (filha do ator Mário Lago).
Luta armada
“Eu tinha muitos amigos da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária)”, lembra Carlos da Terra. Ele acredita que por esta razão entrou no radar dos órgãos de repressão. “muitos participaram ativamente da luta armada”, conta o escritor, lembrando que na época essas ações “não eram consideradas banditismo, como é hoje; era uma coisa mais pura, um ideal de vida. Estava errado? Estava, mas era um ideal. Porque naquela época o pessoal imaginava uma vida que na realidade não era como se imaginava”.
Expropriação
“Os assaltos a bancos eram chamados de expropriações, porque o dinheiro era do povo e deveria voltar para o povo”, diz Carlos Terra, “mas acho que o dinheiro era aplicado na luta armada mesmo, para derrubar o poder, porque se achava que derrubando poder, todo mundo ficaria feliz”, ressalta o escritor.
VAR-Palmares era um grupo que efetuou ações armadas contra o regime militar, entre elas sequestros de diplomatas e o roubo do chamado Cofre do Adhemar, onde o ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, guardava dinheiro supostamente obtido através de corrupção. Segundo comunicado divulgado por Carlos Lamarca, um dos comandantes da organização na época, havia mais de US$ 2,5 milhões em espécie no cofre.
“Depois de uma longa investigação, localizamos uma parte da famosa ‘caixinha’ do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, enriquecido por anos e anos de corrupção. Conseguimos US$ 2,5 milhões. Esse dinheiro, roubado do povo, a ele será devolvido”, afirmou Lamarca.
Terra diz que não participou da luta armada, mas frequentava reuniões de grupos de esquerda. Isto foi suficiente para ele passar por situações perigosas. “Fui vigiado e perseguido. Uma vez me levaram em uma Rural Wyllis, com homens armados de metralhadora, e falavam que iam me matar, mas me deixaram em uma padaria e foram embora”.
Ele acredita que só não morreu porque os policiais queriam usá-lo como isca para atrair outros militantes. “Achavam que eu ia atrair alguém, pararam e me mandaram tomar um café. Eu fui e percebi que eles combinaram alguma coisa e foram embora, acho que esperavam que eu me encontrasse com alguém, mas graças a Deus ninguém apareceu”.
Embora não tenha sofrido agressões físicas, Terra sofreu psicologicamente. “Vivia com medo e até há pouco tempo não conseguia falar sobre o assunto. Eu acordava com medo”.
Segundo Terra, o AI-5 (Ato Institucional número 5) “oficializou a repressão, mas já era bravo o negócio”.
O AI-5 foi um decreto do governo do presidente Costa e Silva, publicado em 13 de dezembro de 1968 e deu início ao período mais duro da ditadura militar.
Arrependimento forçado
Terra acrescenta que “teve pessoas que foram obrigadas a ir à TV dizer que estavam arrependidas, foram tapeadas e o Brasil estava tudo bem”. É o caso de Massafumi Yoshinaga. Para o escritor, a repressão foi aumentando, até 1979, quando houve a Lei da Anistia, quando “começou a aliviar”.
Sobre alguns políticos e setores da sociedade que pedem, por exemplo, a volta do AI-5, Carlos da Terra afirma que “isso é um absurdo. Não há necessidade de uma repressão tão dura assim, pois o povo brasileiro não aceita o comunismo, que nem existe mais. O que acontece é que hoje quem defende uma linha de esquerda é como quem defende um time de futebol, mas naquele tempo não; as pessoas tinham intenção de fazer o bem. Achavam que iam fazer o bem, que não ia faltar assistência médica, escola e comida pra ninguém. Era uma utopia mesmo, mas o pessoal achava”.
“Isso não é uma questão de política (pedir a volta da repressão), é uma questão de educação. Pessoas que querem tudo na marra, que querem matar quem pensa diferente. São ditadores por educação, não por política. Eles não pregam contra o regime marxista e tal. Eles pregam uma linha duríssima. É uma questão de educação”.
Para Carlos da Terra, “hoje não existe mais o regime comunista ou capitalista; existe o regime econômico. Tendo dinheiro no bolso está tudo bem”.
“A lição que fica é que hoje em dia não há mais esperança de um sistema de vida melhor. Hoje todo mundo sabe que o importante é ter capital para viver bem, comer bem. Há uma sensação de vazio porque não existe luta ideológica, as pessoas têm medo”.
Comunismo
Segundo ele, “o conceito de comunista era muito diferente do que é hoje, hoje se assemelha muito ao capitalismo. Não tem muita diferença, na verdade o interesse pelo capital é flagrante em ambas as partes. Mas naquela época se respirava política nos barzinhos, em todo lugar, aí começou uma repressão muito forte; o clima era de medo. Brasileiro não aceita comunismo de jeito nenhum”, conta Carlos da Terra.
Segundo ele, naqueles anos, “a juventude achava bonito ser da esquerda. Sempre é assim né? Quando o jovem é estudante, ele é de esquerda; quando se forma, muda de lado”, diz Terra, esboçando um sorriso.
O escritor ressalta que “ninguém sabia direito o que era o comunismo; a Rússia era fechada (cortina de ferro) então se achava que era um paraíso. Cuba era vitrine. Fidel Castro recebeu muito dinheiro para manter como vitrine, uma propaganda da União Soviética. Mas ninguém sabia direito como era o comunismo, achava-se que era o paraíso: todo mundo tinha o mínimo necessário para viver e algumas pessoas teriam um pouco a mais, dependendo da função. Por exemplo: todos teriam um carro, mas um médico teria prioridade porque teria de atender os pacientes. Hoje a gente sabe que na realidade não era assim, mas em Cuba era; Cuba foi mantida para ser uma vitrine e lá a coisa funcionava assim; Fidel Castro fazia a coisa aparecer. Só fomos ver o que era o comunismo mesmo com a queda do muro do Berlim”, conta Carlos.
Reação da direita
“Militei na esquerda, como a maioria dos jovens da época, só quem era do Mackenzie (Universidade Mackenzie) era da direita, do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ali se formou uma reação forte da Direita”, afirma Carlos Terra. Segundo ele, “já havia repressão e fiscalização, com pessoas sendo fichadas e em liberdade vigiada. Eu mesmo fiquei (sob vigilância). Você sabe que ta sendo vigiado, não é oculto, vinham conversar com você e deixavam claro que você estava sendo vigiado”.
Afirmando que “a política naquela época era muito romântica”. Carlos da Terra lembra que existiam “terroristas da direita também. Eu conheci e participei de reuniões da direita também”.
Ele conheceu Sábato Dinotos, cujo nome verdadeiro era Aladino Félix, que era judeu. Preso e solto pela ditadura em 1968, após um atentado em frente a sede do DOPS. Estaria a serviço da extrema direita. “Ele era muito inteligente”, conta Carlos da Terra. “Ele se julgava um deus”, acrescentou o escritor, lembrando que frequentou o escritório de Dinotos, que ficava no edifício Martinelli. “Ali se planejava jogar bombas, mas eu não joguei bomba nenhuma”, conta Terra, “mas eu ficava sabendo; tinha até militares que participavam desse grupo”.
Para Carlos da Terra, o objetivo dos terroristas de direita era o mesmo dos ativistas de esquerda: tomar o poder, embora a direita já estivesse no poder. Isso reforça a tese de alguns estudiosos de que havia dissidências dentro do regime ditatorial, que também lutavam para assumir o poder e endurecer ainda mais a repressão.
“Existiam várias tendências e não havia uma definição: eu sou da esquerda ou eu sou da direita; era o cara que queria arrumar a vida e partia pra luta”, conta o escritor, que também conheceu José Dirceu.
“Ele não era de falar muito naquela época, mas era um líder, assim como o Lula, talvez até mais do que o Lula”, revela Carlos da Terra. “Ele (Zé Dirceu) se firmou como líder estudantil e, nas passeatas, ele tinha total controle sobre aquela multidão enorme. Ele dava uma ordem lá na frente e ela era repassada pessoa a pessoa até o final”, lembra o escritor. “Teve uma passeata na qual eu estava e o Zé Dirceu deu uma ordem lá na frente e todo mundo repassou a ordem até o final. Eu achei interessante e tentei fazer o mesmo, passando uma ordem mais ou menos parecida para o cara atrás de mim, mas ele achou estranho e não repassou a ordem. Ela não passou dali!”, lembra Terra.